Coisa de Mãe, Desabafo, Toronto, Virei mãe

Ser mãe e exercitar a empatia numa cultura diferente da sua

No post anterior a este eu digo que voltei a escrever aqui no blog antes do programado e que diria o motivo no próximo. Também falo sobre empatia e que quero que este seja um lugar para o exercício do não-julgamento.

Pois bem, vamos explicar o primeiro causo e embaralhar o segundo.

Assim que eu decidi dar uma pausa no Alicia e Outros Papos –  lei de Murphy – recebi um convite muito especial e que me fez lisonjeada e feliz: participar do projeto Mãe no Canadá, tocado por um grupo de blogueiras brasileiras feras que moram por aqui, em diversas partes do país. Todo mês elas publicam, no dia 20, um post com tema em comum e dividem o link de todos os blogs participantes ao final do texto, para que o leitor possa conhecer pontos de vista, histórias e vivências diferentes sobre a mesma questão.

Lógico que aceitei e me comprometi a integrar o time a partir deste mês, por seu simbolismo: mês de maio, Dia das Mães. Tem jeito melhor de começar?!

Portanto, já sabem: todo dia 20 vai ter post por aqui, com tema relacionado a ser mãe no Canadá e com links de mais dez blogs, olha que delícia! Para quem está pensando na ideia de ser mãe no Canadá, vai ter material de pesquisa de sobra!

Agora, o segundo item…e eu já vou avisando que é pauta-bomba e que não foi escolha proposital, tipo “notícia ruim é que vende mais” ou coisa assim. Mas é que a questão marcou meu Dia das Mães, está na minha cabeça até agora, não estou sabendo lidar, preciso da ajuda dos universitários.

Tenho uma conhecida com um filhinho de três anos, e ela queria muito dar a ele um irmãozinho. Tentou por meios naturais, teve dois ou três abortos espontâneos, sofreu muito, resolveu partir para inseminação artificial. Se encheu de hormônios, apertou o orçamento, mudou toda a rotina da vida da família, passou por todos aqueles procedimentos necessários para que o processo desse certo. E deu. No dia em que nos encontramos, me contou toda feliz que estava grávida. De três. Não deu nem tempo de eu mudar a reação de toda feliz – por ela ter conseguido engravidar – para total desespero – com a notícia dos tríplices – quando ela emendou: “Não, não fique assim. Eu vou reduzir a gravidez”.

Excuse me?

Pois é. Esse é o meu tema. Aborto? Não. Riscos da inseminação artificial? Não. Choque cultural? Pode ser. E pode ser tudo junto, também. O que isso tem a ver com ser mãe no Canadá?

Por aqui, o aborto é uma prática legal, é um direito da mulher. As meninas crescem numa sociedade onde o ato é visto de uma maneira diferente do que na nossa sociedade, onde interromper uma gravidez é considerado crime, dá cadeia (ou teria de dar) tanto à gestante quanto a quem realiza e até quem conduz a mulher a fazê-lo.

Se a lei funciona no Brasil, se ela está certa, se aqui estão certos, não é a questão que quero levantar. Pessoalmente, sou radicalmente contra aborto. Nunca o faria, em qualquer circunstância. Mas a história é outra quando a gente põe cara nos fatos, quando a coisa acontece com pessoas ao seu redor, do seu convívio e quando a gente sabe dos pormenores. Qualquer questão toma outros contornos quando a gente o vê de fora e depois, de dentro.

Sei que no fatídico instante em que minha conhecida me deu as notícias, eu desejei ter o poder de apagar aqueles segundos que se passaram da minha vida, porque eu não queria ter sabido, por “n” motivos: porque eu gosto muito dela, sei a mãe maravilhosa que ela é, como ama seu filho, e não queria mudar de opinião a seu respeito, não queria julgá-la com todos os meus pré-conceitos e preconceitos. Porque eu não queria feri-la, deixando-a saber da minha opinião imutável de que aborto é assassinato, sim. E por dó dela, pena do imbróglio em que se meteu: por ter duvidado do risco sabido da possibilidade de gravidez múltipla em casos de inseminação artificial, por ter acreditado no “comigo, não”, pelo rumo que sua sonhada gravidez tomou. Independentemente de sua decisão, essa gravidez não seria mais aquela coisa gostosa que a gente sempre espera que seja quando engravida.

Tendo os três filhos, ela sabe que sua vida, do jeito que ela conhece hoje, vai acabar. E ela que nem queria tirar o ano inteiro de licença-maternidade a que temos direito, por aqui. Havia me dito, em outras conversas, que ficou quase louca em casa todo esse tempo quando teve o primeiro. Dessa vez ela dividiria a licença com o marido.

Decidindo pela redução da gravidez como me relatou – prosseguir apenas com um, dos três bebês – ela estará adentrando um caminho que nem sabe onde irá levá-los: preconceito dos que sabem da sua decisão, risco de colocar a gestação toda a perder, eventuais arrependimentos para o resto da vida.

Digamos que ela consiga dar à luz a um dos bebês – como será a primeira festa de aniversário? Será que, lá no fundo da consciência desta mãe, ela não irá pensar que poderiam ser três soprando a velinha? Três velinhas? Como será que eles seriam? Seriam parecidos, idênticos? Teriam temperamentos diferentes?

Será que ela não está tomando esta decisão tão séria sob o medo de não dar conta, sem pensar nas consequências a longo prazo? Será que ela está sendo devidamente orientada, profissionalmente assistida, neste momento?

E como escolher o que fica e quais irão pra lata do lixo? Na base do “uni-duni-tê-salamê-minguê”?

E quando o sortudo que ficou descobrir que não foi concebido sozinho? Qual será sua reação?

Decidindo prosseguir adiante com a gravidez tripla, qual vida e qual mãe essas crianças terão? Passarão necessidade? Terão uma mãe insana? A gente não vive reclamando que é duro criar um, dois? Imagina quatro, sendo três da mesma idade?

Dois peitos, três filhos – a equação não fecha.

Quantas fraldas por dia? Quantos berços, quantas mamadeiras, quantos braços para embalá-los? Se eu gastava 200 dólares de fórmula por mês com a Alicia, faz as contas se essa mãe não conseguir produzir leite suficiente…

Vão ter que mudar de casa, ela vai ter que parar de trabalhar, vão ter que trocar o carro por uma van? Quatro cadeirinhas no banco de trás? Imagina sair de casa, enfrentar uma calçada com dez centímetros de neve empunhando um carrinho para quatro bebês?

No Canadá, o governo ajuda com um salário mensal, por filho, as famílias de baixa renda. Mas, para alguns subsídios, como creche, a mãe tem que estar trabalhando (o ensino público é gratuito e mandatório para crianças a partir dos quatro anos de idade. Antes disso é opcional e as creches são privadas. Acredito que Toronto tenha algum tipo de serviço gratuito antes desta idade mas, se tiver, não deve ser uma coisa fácil de conseguir).

Desculpa não ter uma pesquisa aprofundada sobre isso, mas a questão realmente não é essa. É sobre o difícil exercício da empatia e como educar seu filho numa cultura tão diferente a sua. Foi o que eu falei lá no começo do post: eu não disse que aqui não é lugar de julgamento, mas de amparo? Que me fez tão bem ser abraçada virtualmente por tantas mulheres que se viram no meu problema e simpatizaram com a minha dor? E agora, como a gente faz, num caso desses? Esquece tudo e desce a lenha?

Eu dividi o caso com amigas que moram no Brasil e a reação imediata de algumas delas foi se horrorizar com a frieza desta moça. “Como assim, que absurdo, como ela vai conseguir?”

Esta mulher cresceu numa sociedade onde o aborto não é crime, está tudo certo e na lei. Para as minhas amigas, e para mim, está errado, é ofensa. Para mim, burca também é um absurdo. Entendeu onde quero chegar?

Durante nosso encontro, até que consegui manter uma certa neutralidade na voz e nas opiniões. Acho que ajudou viver aqui já há quinze anos. Não omiti que sou contra o aborto mas, no final, é uma decisão dela, que não competiria a mim julgá-la. Ela agradeceu dizendo que já está sendo crucificada o bastante por outros a quem confidenciou o problema. Eu imagino. Ela estava um caco, bastante abatida. Disse que não conseguia dormir direito, pelo peso extra no corpo, carregando três, e na consciência, por não parar de pensar no assunto.

Ao final, me pediu umas ideias de lugares para ir comemorar o Dia das Mães em Toronto. Eu já sabia que a cirurgia para a eventual redução na gravidez aconteceria na terça-feira depois da data. “Como essa mulher vai conseguir comemorar o Dia das Mães tendo um compromisso desses, dois dias depois???”, pensei.

Mandei as sugestões, como ela havia me pedido, e passei o meu Dia das Mães pensando nela. Também incluí no e-mail um pedido para que ela analisasse alguns ângulos sobre sua decisão, uma espécie de último apelo, mas que eu estaria pronta para acolhê-la depois da fatídica terça-feira, independentemente da decisão que tomasse.

Meu marido, canadense, achou que eu não deveria ter mandado o e-mail, que eu estava invadindo sua privacidade, mas eu, brasileira, argumentei que, no momento em que ela se abriu para mim, me deu o direito de dizer o que penso. Sem ofensa, de forma educada, com amor. E que, tendo meu pré-conceito sobre o assunto, senti obrigação moral de interceder.

O e-mail não foi respondido, a terça passou, nos encontramos, novamente, alguns dias depois. As duas sem-graça, não consegui nem encostar e nem olhar para a sua barriga ao abraçá-la. Sua única reação, antes de começarmos nossa reunião de negócios, foi me dizer: “Lovely e-mail, thanks“, apertando, discretamente, a minha mão. Ela ainda estava um caco, olhos inchados de quem deve ter passado os últimos dias chorando. Não falamos de Dia das Mães, se ela foi ou deixou de ir para os lugares que eu indiquei. Como?

Outro abraço breve e contido no final da reunião, e ainda sem resposta para o e-mail.

Ainda morrendo de dó desta mulher, dessas crianças, desta família. O que tudo isso tem a ver com um post sobre ser mãe no Canadá?

Tem a ver com empatia, empatia ao diferente, e essa sociedade está cheia de diferenças com a de onde eu vim. Senti que eu consegui exercitar empatia em relação à minha conhecida, sem mudar meu conceito. Consegui aceitar e acolher o diferente, apesar de não concordar com ele. Me senti falha se souber que ela foi adiante com a decisão, mas isso é julgamento. Difícil, viu?

Ao mesmo tempo, minha filha está crescendo nesta sociedade. Como passar os meus valores para ela? E o medo de que ela se torne uma dessas mulheres e eu não consiga acompanhar? Pano para outra manga e outro post…

Me diz, o que você faria nesta situação? Já passou por algo assim?

 

Confira os posts das demais participantes do Projeto Mãe no Canadá: 

Adriane (Em Ottawa, Ontario): Like a New Home

Alessandra (Em Bathurst, New Brunswick): Canadiando

Beatriz (Em Vancouver, British Columbia): Biba Cria

Carol (Em Mississauga, Ontario): Minha Neve e Cia

Carol (Em Vancouver, Bristish Columbia): Fala Maluca

Gabriela (Em Toronto, Ontario): GabynoCanada

Livi (Em Toronto, Ontario): Baianos no Polo Norte

Mariana (Em Calgary, Alberta): De bem com a vida no Canadá

Renata Luppi (Em Burnaby, Bristish Columbia): Mala Inquieta

Vanessa (Em Calgary, Alberta): Partiu Canada

 

4 Comments

  1. Ola!
    Nem sei o que escrever. Eu que lutei muito para ter meu filho não consigo imaginar. Perdi 2 filhos antes do Thomas e na segunda gestação queriam fazer um aborto porque meu bebe tinha uma anomalia genética incompativel com a vida. Eu não consegui. Esperei o coração parar de bater com 5 meses de gestação. Eles me respeitaram. Respeitaram minha cultura e o que eu acreditava. E acho que temos que fazer o mesmo. Neste e em outros assuntos. E é por isso que eu gosto de morar no Canadá: porque meu filho vai ter contato com diferentes culturas e vai escolher o que achar certo, não se adequando ao que é mais comum (pelo menos assim eu espero). Beijos

    1. Alessandra Cayley

      Oi, Gaby,tudo bom? Obrigada por ler meu texto e deixar um comentário. Sinto muito, muito pelo que você passou, de coração. Eu também tive um aborto espontâneo e fiquei duas semanas com meu bebê morto dentro de mim porque não conseguia aceitar que o coração dele não estava sendo ouvido, fiquei esperando um milagre (era época de Natal), indo de médico em médico, não conseguia aceitar que teria que tirá-lo, pirei. Fiz ultrassom numa terça, estava tudo bem, na quinta seguinte, não havia mais batida de coração. É duro, nenhuma mulher deveria passar por isso, porque a gente sempre sonha que a maternidade é aquela coisa linda, smooth ride, e nem sempre é assim. Tanto o Brasil como o Canadá tem suas coisas lindas e suas coisas feias, tenho os dois no coração e vou aprendendo a conviver com a diferença deles e as nossas! Beijo grande!

  2. Oi Alê,

    Gostei do jeito como você abordou o tema e vou falar a forma como eu tento encarar as coisas para viver melhor. Sei que as vezes é quase impossível a gente não julgar os outros baseados nos nossos parâmetros mas juro que tento respeitar o direito alheio de agir como achar que deve (desde que isso não interfira no meu direito). E espero o mesmo das outras pessoas.

    Se eu sou contra ou a favor não importa, a questão é que ela com certeza pensou muito antes de tomar essa decisão e não deve ter sido fácil. Mas é ela que sabe onde o calo aperta e não a gente.

    Tente entender o lado dela e ofereça seu ombro amigo por mais que a decisão te cause indignação.

    Beijos

    1. Alessandra Cayley

      Oi, Livi, sempre sábias suas palavras. Obrigada por ler meu post e vir aqui comentar. O que me causou foi tristeza, mesmo, de ver uma mulher numa situação dessas, mas foi o que vc disse, a gente não pode nem julgar nem querer mudar o rumo da coisa de acordo com nossos pré-conceitos. Espero vê-la numa melhor da próxima vez em que nos encontrarmos, mas meu ombro está aqui, sim, pode deixar. Beijo grande!

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