Se um extraterrestre chegasse na Terra agora e decidisse se inteirar sobre as últimas do nosso planeta baseando-se neste blog, coitado: ele nunca saberia que estamos enfrentando uma das maiores pandemias mundiais de todos os tempos.
O silêncio tem justificativas: primeiro eu “paniquei”, como todo mundo. O medo deste desconhecido tão desconhecido me paralisou. Lembro-me de sair pra checar a caixa do correio, e sentir pavor de respirar, do lado de fora: “Será que o bicho ainda está vivo, flutuando, invisível, pela vizinhança?”
Junto a isso, a pura concentração de esforços para sobreviver, física e emocionalmente, dos mais pequenos detalhes aos maiores: cadê o emprego, que sumiu de um dia pro outro? Junto com o papel higiênico, de todas as prateleiras de todos os mercados do Canadá. A pandemia me pegou desprevenida: eu detesto estocar!
Como vamos comprar o bagel nosso de cada dia? Quem vai dar aula pra Alicia? Eu. Como dar aula pra Alicia?! O marido pode continuar a trabalhar? O governo vai ajudar? Como surfar no mar da burocracia até conseguir os benefícios sem enlouquecer? Vamos quebrar? Isso realmente está acontecendo?
E de lá pra cá tem sido assim.
Também deu raiva, o que a medicina justifica. Segundo o psicólogo americano Dolf Zillman, a sensação de perigo é o estopim para a raiva. E daí eu achei que seria melhor mesmo ficar quieta, porque o mundo não estava precisando de mais posts de lamentos pessoais.
Com o passar dos meses, assistindo a extraordinária capacidade do ser humano em se adaptar, e os resultados positivos das medidas tomadas pelo governo deste país, fui me sentindo à vontade para escrever sobre o assunto – e inteirar nosso amigo alienígena da situação.
A raiva, esta cresce, misturada com vergonha. Raiva do impacto devastador desta pandemia em vidas que não têm absolutamente nada a ver com o imbróglio. Raiva da tão clara evidência de que o tamanho da pilha de cadáveres produzida por mortes causadas pelo Coronavírus em um país é proporcional à estupidez dos seus governantes. Raiva de ver uma crise de saúde desta magnitude ser tratada, no nosso Brasil, como se fosse um time de futebol ou eleição política: torço contra ou a favor, sou deste ou daquele partido e vou fazer de tudo para aniquilar o “adversário”. Oi?
E vergonha, de contar para a minha filha como viemos parar nesse buraco: por ganância.
Eu sou crítica a muitas coisas do Canadá. Mas, desta vez, confesso que estou bem orgulhosa de como a pandemia foi tratada, por aqui.
Sim, decisões equivocadas e estapafúrdias foram tomadas, e ainda são, como em qualquer lugar do mundo (não fechar as fronteiras durante as férias do March Break foi uma delas), mas o que me impressionou foi a coesão no discurso em todas as esferas de governo: municipal, provincial e federal.
Na hora do pega pra capar, com pequenas e abafadas exceções, o país se uniu e parou para ouvir as instruções que vinham “lá de cima”.
O primeiro-ministro, Justin Trudeau fazia pronunciamentos diários na TV, alertando, acalmando, informando e instruindo (também serviu de colírio para os olhos, porque ele é bonitão. Até a Alicia, no alto dos seus seis anos, já sabe, e vinha de onde estivesse, para vê-lo!). Doug Ford, o governador de Ontário, assim como outras autoridades, como ministros e, no caso de Toronto, o prefeito John Tory, também faziam aparições frequentes. Todos com o mesmo discurso.
E a população, em sua maioria, ouviu. Quando entramos em lockdown, em meados de março, o povo realmente se trancafiou.
Ninguém desobedeceu? Claro que sim. Mas foi uma minoria, que não teve respaldo nem afago na cabeça, tanto das autoridades quanto da vizinhança.
E o resultado a gente vê nos números. Até o dia de hoje, o Canadá contabiliza 112.240 casos de COVID-19, com um total de 8.870 mortes devido ao vírus. Deste total, mais 97 mil pessoas estão recuperadas.
Comparemos com os números dos países onde os governos não acreditam na pandemia e constataremos a triste e brutal diferença. No Brasil, já são mais de 2,2 milhões de casos e mais de 82 mil óbitos. Só os números do Rio de Janeiro, com 150 mil casos e 12 mil mortes, ultrapassam os casos do Canadá inteiro. E nem tentemos comparar com nosso vizinho, os Estados Unidos, beirando a 4 milhões de casos e mais de 142 mil mortes.
Vai ter gente querendo argumentar, utilizando-se de número de casos por habitantes, densidade populacional e afins. Mas ainda assim, o número de mortes poderia ter sido bem maior se o país não tivesse tomado providências drásticas e efetivas. O Canadá tem 37,5 milhões de habitantes, sendo 14,5 milhões na província de Ontário, onde fica Toronto. Ainda é gente pra caramba, não?
A gente pode sentar e discutir a questão o dia todo: se os números são verdadeiros, se o que foi feito até aqui foi o que deveria ter sido feito, porque um país faz assim e o outro faz assado. Mas é a percepção, no dia a dia, de que a coisa está funcionando é o que importa. De estar chegando no estágio 3 de reabertura com pouco mais de dezenas de casos -não milhares – e ver que ainda pode haver vida, novamente. Que valeu termos ficado engaiolados por quase quatro meses.
E é somente este o motivo deste texto: usar a experiência de como estamos, hoje, e do que foi feito até chegarmos aqui, como um exemplo de que, se bem feitos, confinamento e distanciamento sociais funcionam.
Sem entrar nessa de comparar as duas nações. Como brasileira, que nasci e cresci no meu país, entendo perfeitamente que comparar Brasil com Canadá é o mesmo que comparar Polo Norte com Amazônia. Não dá. Nossas realidades têm diferenças colossais. E essas diferenças ficaram ainda mais evidentes durante a pandemia.
Nestas horas, um governo consciente do seu dever faz toda a diferença. Morrer de fome junto com os filhos em casa ou correr o risco de pegar essa tal de COVID-19 (e quem sabe sobreviver)? Esperar o próximo ônibus, pra fazer direitinho o distanciamento social? Quantos ônibus vou ter que esperar mesmo…? Perder o emprego, que foi tão difícil encontrar, ou dizer pro chefe que prefere obedecer o confinamento? Obedecer? O que é isso? O Brasil não é o país do jeitinho?!
A questão é complexa, e é onde o vírus deita e rola. Por isso a importância do pulso firme e consistente das políticas públicas e o engajamento da sociedade como um todo. Porque fica fácil cumprir quarentena imposta sabendo que o dinheiro pra comprar o que comer vai chegar, que o meu patrão também está sendo respaldado, que a empresa de ônibus está fazendo a parte dela para que eu faça a minha. E que jeitinho não funciona com esse vírus “estranja”.
No nosso país, chega a ser cruel falar de isolamento social para determinadas camadas da sociedade. A percepção é que se isolar para não contrair o vírus, ou não propagá-lo, é privilégio de casta, assim como o uso do álcool em gel e estocar comida. Por isso, é crucial que, quem pode, se isole. Pelos que não podem, por respeito ao próximo e ao sistema de saúde da sua cidade.
Não dá pra se isolar como deveria, faça o seu melhor. O chope pode esperar. A visita ao shopping, também. Eyes on the prize, como dizem por aqui, “de olho na recompensa”, é o que precisamos ter em mente. O que é a recompensa, neste caso? A vida, com o melhor do que tínhamos dela, pré-pandemia.
É pensar que cada um de nós tem uma força enorme no contexto, seja para ajudar ou piorar a situação.
Quantas pessoas posso infectar? Quantas outras famílias serão impactadas com minha irresponsabilidade? Quantos profissionais de saúde terão de trabalhar em dobro, quantos leitos de hospital precisarão ser criados? Quem vai pagar essa conta? Quanto vai, de verdade, custar no meu bolso, cumprir a quarentena, o distanciamento social?
Estas foram as perguntas e as contas que o governo do Canadá enfiou na nossa cabeça durante os meses de lockdown e restrições.
Houve dias que eu achava que iria EN-LOU-QUE-CER: “Mais um dia enfurnada em casa (não esqueçam de que aqui, por causa do inverno, normalmente já passamos muito tempo do lado de dentro)?!” Porém, o pavor de contaminar minha filha ou a mim e meu marido e deixá-la pra trás, além de quantas outras vidas eu impactaria, mães e pais de outros filhos, era maior . Quem disse que iríamos morrer desse tal de Corona? Não sei, mas simplesmente não quis e ainda não quero pagar o preço para saber. A recompensa era poder estar aqui hoje, com saúde, história com final feliz pra contar e consciência limpa. O resto a gente corre atrás.