Não sei se este post vai ter foto, se vai sair bonito ou em português correto. Eu só quero eternizar este dia em palavras porque foi um daqueles dias de catarse, experiências e aprendizado, um atrás do outro.
Hoje meu sogro faleceu. E como é fácil falar da morte quando o morto é do outro. Sim, eu senti, muito. Sim, eu estava do lado dele, segurando a mão dele, até o último instante. Mas eu estou aqui, blogando. Minha avó, que morreu quase nas mesmas condições, se tivesse sido com ela, hoje, eu provavelmente estaria deitada com ela, lá no frigorífico do hospital. Três anos depois da sua morte, uma parte grande de mim ainda anda por aí, necrosada. Nunca mais fui a mesma, nunca mais serei.
Estou casada há quase treze anos mas o contato com meu sogro era mínimo. Falar a verdade, tinha medo de falar com ele e levar uma entortada. Também, ele era meio surdo, tinha que gritar se quisesse ser ouvida e, para piorar, ele não entendia o meu sotaque.
Ele bebia, muito, e fumava idem. A vida dele e da família toda foi esburacada por esses dois vícios. E os pulmões dele, também. Daí, a causa morte.
Dias atrás, ele caiu, de novo, já começava a virar rotina receber ligação da sogra dizendo que o Hugh havia caído. Mas como vaso ruim não quebra, ele sempre se safava, mais ou menos ileso. Mas não desta vez. Precisou ser levado para o hospital, de ambulância, e ali ficou, estava muito debilitado. A pneumonia atacou, parou de respirar, perdeu a voz, precisou ser entubado, transferido para UTI; tudo em questão de três, quatro dias.
Na UTI, os médicos desenganaram: ele estava tão absurdamente debilitado, as alvéolas dos pulmões duras feito concreto (palavras da médica, assim mesmo: duras feito concreto). Ele não teria a mínima chance de sair dessa e, se saísse, teria que se submeter a uma traqueostomia e vegetar numa cama.
Estamos falando de um homem que viveu tanto e tão intensamente, que já era lenda na família e entre os amigos e os amigos dos amigos, isso sem morrer. Algumas histórias mais pareciam vindas das páginas dos livros de James Patterson, que ele adorava ler. Ninguém concordou que um final desta forma seria digno da história dele.
Daí que a família resolveu “pull the plug“, como dizem por aqui. Em português claro, desligar os aparelhos. Aqui, é permitido.
Dividindo o que se passava com meus amigos e familiares no Brasil, ouvi muitos comentários de “como assim”, “é crime”, “não pode”, “ainda há vida”. E eu também pensava assim, e me martirizei por dias. Mas hoje, acho que, no caso dele, foi a melhor coisa que poderia ter sido feita.
Ontem ele ainda estava mais alerta: mexia os olhos. Hoje, mais nada. Os médicos disseram que os pulmões estavam cada vez mais comprometidos. Olhar para ele, todo entubado, com a pele roxa pela pressão dos elásticos que seguravam o tubo na sua boca, aquele monte de fita adesiva segurando não sei quantos agulhas para não sei quantos medicamentos…e para quê? Muito sofrimento para absolutamente nada, só para mantê-lo vivo para desencarno de peso da família.
Eu até tentei perguntar para ele, ontem, se ele ainda tinha algo dentro dele para continuar lutando e recebi uma tentativa de virada de cabeça, que entendi como não.
Hoje, dez para o meio-dia, a família resolveu que era hora de acabar com o sofrimento. Assim que a máquina foi desligada, não houve mais respiração de nenhum lado: nem dela, nem dele. O que o estava segurando por aqui era mesmo o respirador. Ao invés de sentir que o havíamos matado, senti paz. Ele se foi tranquilamente, cercado da família, ao som de Neil Diamond, seu cantor favorito.
Ele não foi sedado, só foi dada morfina para dor e remédio para ele não se sentir sufocando, nem agitado. Mas nem precisou. Ele estava absolutamente tranquilo, exausto de viver. Ele se exauriu de viver. Esgotou, tomou até a última gota.
O coração demorou quarenta minutos para parar por completo. E seu último suspiro foi quando a música favorita dele (sorry, não lembro o nome) parou de tocar, à 1:30 da tarde, em ponto. Todos se arrepiaram; ele sempre brincava que só iria parar de respirar no final da canção. E assim o fez.
Eu nunca tinha visto ninguém morrer antes, ainda mais assim, assistido, orquestrado. Não sabia o que esperar, fiquei com receio, mas resolvi ficar na sala e acompanhar tudo, pelo meu marido e porque sou jornalista: meus olhos foram feitos para testemunhar.
Nesses dias que se passaram, não foi fácil lidar com o cansaço, a incerteza, o dirige para lá e para cá, o deixar a vida de lado para acudir a família, mas ainda assim ter que estar presente e fazer com que as coisas funcionem, de algum jeito porque, afinal de contas, a filha precisa comer, tomar banho e brincar, ser criança. Aliado a isto, o zilhão de pensamentos, julgamentos, preconceitos, diferenças culturais e o desconhecer a si mesmo.
Eu entrei nessa achando que “pull the plug” era horrível, um crime, desumano, mas depois de hoje, acho que desumano é confinar uma pessoa sem a mínima expectativa de vida a uma cama, com um tubo enfiado na goela, ora alucinando com narcóticos, ora a mercê de todas as dores e desconfortos da situação.
Hugh só tinha 78 anos e se não fosse pelo alcoolismo e pelo fumo excessivo, ainda poderia puxar mais umas décadas. Eu olhava para ele e ficava pensando como somos idiotas, como abusamos do nosso corpo, achando que somos invencíveis, infalíveis, que isto ou aquilo não vai acontecer com a gente. Minha vó se orgulhava, dizendo que, dos pulmões, só tinha “os ganchos”. Era outra que tinha um coração de ferro e que ainda poderia estar entre nós, se não fosse o maldito cigarro.
A família do meu marido é totalmente ateísta e muito, muito, mas muito reservada, contida. Imagina a pororoca que é quando encosta em mim: agnóstica teísta, mas criada no catolicismo, brasileira, com mais emoção do que sangue correndo nas veias. O médico estava explicando como seria o processo e eu já comecei a chorar. Só eu. Na dúvida, antes de tudo, perguntei se eles não queriam um padre, não custa, né? Claro que a resposta foi não. Hugh nunca acreditou nestas coisas.
Nos quarenta minutos do processo de morte de Hugh, eu fiquei ali, segurando a mão dele, rezando Pai-Nossos e Ave-Marias, mesmo sem acreditar no Deus da igreja católica, sussurrando para ele que estava tudo bem, para ele ir em paz. Só queria que ele ficasse em paz.
Eu pensava na minha vó e agradecia pela oportunidade de fazer por ele o que não pude fazer por ela (quando minha vó foi internada, eu não pude ir para o Brasil porque estava grávida de oito meses da Alicia. Havia acabado de chegar de lá, não fazia nem duas semanas).
Quando tudo terminou, tremia das cabeça aos pés, estava numa espécie de choque, mas estava em paz. Achei que a imagem dele ali, amarelando, perdendo a cor, se esvaindo à nossa frente, fosse me perturbar, aterrorizar meu sono, mas não. Eu cresci, amadureci, revi meus conceitos, joguei luz em alguns pré-conceitos, tabus e valores impostos.
Vou dormir triste, mas com a consciência tranquila. O agradeci por tudo, por ter me acolhido e me aceitado na família. Pedi perdão por qualquer coisa. Disse que estaria do lado dele até o fim, de coração. Agora chega de sofrimento. ‘Bora viver.
PS: para constar, eu não quero nunca ser entubada, a não ser que eu tenha plenas chances de me recuperar e ter uma vida igual a de antes do tubo. Se eu estiver numa condição igual a do Hugh, por favor, pull the plug on me, sem pestanejar.
Linda homenagem esta sua. Certamente o Hugh se orgulha da brasileira estapafurdia, mãe competente, esposa dedicada, que escreveu lindamente este texto com olhos jornalísticos, mas seguramente, ele se orgulha da nora que você foi, estando ao lado dele até o seu final terreno.
Eu sinto muito que você tenha tido que vivenciar esta experiência.
Obrigada pelas lindas palavras, Rô. É, acho que, no final, a gente se acertou, finalmente nos entendemos…